Ana Vitória Mussi
O ser humano é um acúmulo de tempos, memórias e referências; a obra de Ana Vitória Mussi, através de uma ótica borgiana1, é a repetição e a reinvenção da própria vida, das experiências e seus diversos atravessamentos. Para a confecção desse breve ensaio, foram selecionadas três obras que não apenas representam a dimensão da produção artística como também iluminam o processo de criação e a forma como Mussi trabalha as noções de avesso, de corpo e de imagem. A poética de uma narrativa imagética é operada através da apropriação de imagens agenciada a uma delicada técnica cirúrgica de extração, suspensão e ressignificação.
As arquiteturas nas quais a artista reinsere as imagens constituem o campo semântico de pertencimento dessas novas fabricações; o vidro, translúcido e trabalhado para distorcer, é uma das estratégias adotadas para deslocar e reorganizar o que pode ou não ser visto de suas imagens; jogos de luz, projeções, cortinas e instalações também participam do deli- cado arsenal da artista, tencionando a dicotomia opacidade e translucidez.
Ana Vitória Mussi estabelece novas funções para as imagens: uma cena do filme Asas do Desejo (1967) torna-se outra obra, removida da tela e do movimento cinemático; uma dinâmica luta de boxe ou um arriscado salto ornamental tornam-se momentos congelados, suspensos – a radicalidade da fotografia se apresenta, também, como uma possibilidade de estancar a velocidade, o tempo e o resultado final: impedidos, cristalizados,
esses movimentos tornados imagens abandonam seus corpos e tornam-se outras estruturas, outras arquiteturas.
Por um Fio I faz parte da série Negativo, na qual Ana Vitória fabrica cortinas com os negativos da sua produção fotográfica na época em que foi repórter. Diversos trabalhos compõem a série, costurando as mesma questões: excesso, avesso, destruição, opacidade.
O trabalho seguinte, Mergulho na Imagem, faz parte da série Deslo- camento, e trata-se de uma instalação de 1,80m x 2,0m. Exposto em 2009 no Rio de Janeiro, a parede de tijolos de vidro abriga a imagem de uma atleta no percurso de um salto ornamental.
Por fim, o trabalho Pausa, de 2011: uma caixa de luz com um still do filme Asas do Desejo (1967), do diretor alemão Wim Wenders.
Essas obras, eleitas entre tantos trabalhos expressivos e relevantes, tratam de questões essenciais para o campo da fotografia expandida – a experiência da imagem fotográfica fora dos seus suportes e usos cotidianos –, como o excesso, o avesso da imagem, fisicalidade versus espectral, movimento e estática, apropriações, entre outros jogos de oposições e complementações que se encontram no núcleo das tensões produzidas e operadas pela artista.
Mussi trabalha, em geral, com imagens que cintilam obsessivamente diante do nosso olhar e nos atravessam com velocidade e violência, sem imprimir marca, registro, permanência; trabalha com fantasmas e fantasmagorias da imagem do corpo, evocando memórias, afetos e uma violenta delicadeza de caráter urgente e imprescindível no cenário cru e acelerado do capitalismo tardio.
Os negativos, antes matrizes para gerar imagens positivas, são desloca- dos de sua primeira função e tornam-se superfícies opacas, destituídos, como aponta Elena Guimarães, de suas capacidades icônicas (guimarães, 2007, p. 27). Nesse jogo de objetos e instalações, Mussi reverte a lógica da reprodu- tibilidade: ao incapacitar o negativo, ela transforma a possibilidade imaterial da imagem em uma estrutura física, consolidada: um objeto que anula a reve- lação e, por sua vez, cancela a reprodutibilidade da imagem. Os negativos ex- postos à luz e ao tempo perdem, gradativamente, o registro, a imagem inscrita. Ana Vitória fabrica cortinas de negativos interligados uns aos outros, valendo-se da opacidade da película para produzir um objeto que, em vez de translú- cido, por onde a luz atravessa, bloqueia, impede a luminosidade.