Estudos e Colagens

 

Estudos e Colagens

Em 2007, Bonisson expôs seus estudos e colagens2, ou seja, os rascunhos que serviam de base para a construção de seus trabalhos. Ao tornar públicas essas anotações pessoais, ele revelava uma etapa do seu processo criativo, que, naquele momento, se tornava o próprio trabalho. No seu gesto se ma- nifestava uma passagem que a exposição só podia dar conta de forma frag- mentária. Mostrar esses estudos leva ao que se ausenta da fotografia – aquilo que é também a sua origem, que aparece e simultaneamente se oculta na indecência explícita do ato fotográfico. Os estudos são restos de vivências. Fazem parte de um movimento que desloca a produção fotográfica das me- tas de artisticidade ou de documentação para uma outra ordem que mostra a fragilidade da fotografia, que se apresenta como algo ainda a ser cons- truído e que age sobre o mundo. Uma modalidade de pensamento. A tendên- cia em erigir uma ontologia da fotografia tornou-se frágil. Se é possível falar sobre o passado, isso se dá, conforme Walter Benjamin percebera, a partir do momento em que ele já não mais existe. Com o advento da fotografia di- gital, parece dissolver-se o vigor do aspecto utópico3 com o qual a fotogra- fia se sustentou como prova de um acontecimento. No fechamento de um ciclo, percebe-se quais as forças fundamentais que se retiraram da cena.

O “Estudo-lista de Cut Ups” deixa aparecer a leitura que Bonisson fez de William Burroughs nos anos 80. Ali transparece a condução para a des- construção que vai alinhavando o seu uso da fotografia para retalhar a or- dem das coisas e remontá-las em um novo sistema de organização que não obedece mais a uma lógica classificatória, mas a um imperativo estético. (figura 2) O método do cut-up consiste em pegar um texto original e recor- tar em pedaços para depois rearranjá-lo de outra forma, produzindo novas relações entre as palavras. Burroughs se aproxima dos dadaístas para dizer, junto com Tristan Tzara, que a poesia é para todos. Cada um pode pegar um texto já pronto, desarrumá-lo e arrumá-lo. Para o escritor americano, de fato, toda escrita é cut-up. Tudo se forma por colagem de palavras lidas e escuta- das. Enfatiza-se uma dimensão visual, sonora e cinemática na escrita. O mé- todo cut-up leva aos escritores o método da colagem.

Burroughs conclui que não há como decidir a espontaneidade, mas que se pode introduzir o fator imprevisível e espontâneo com uma tesoura. Expor os estudo é apresentar o acaso que permeia toda produção. “Meu nome é ninguém, disse Ulisses ao ciclope.” Assim Bonisson abre o seu “Es- tudo-lista de Cut Ups”, e conclui com a frase “a vida como cut up e a lingua- gem também” (fig. 4). Entre essas duas frases, outras tantas, manuscritas com letras maiúsculas.

Le mot aluciné. / Tupinambá and ping-pong. / A –——- do desvio. / Seleção / Combinação / – paradigma / – sintagma / Hamlet: Não está vendo nada ali? Rainha: Absolutamente nada, mas tudo que há euvejo…/–Oquevocêvêéoquevocêvê.(F.S)/Signosol/Euca- minho em zigzag. / A descoberta dos cut ups de William Burroughs em Nova Iorque no início dos anos 80.

Muitas vezes, os estudos de Bonisson adquirem a forma de uma ex- perimentação ou de uma reunião de dados e de observações que irão apro- ximá-los de um trabalho científico ou de um projeto arquitetônico. No caso do “Estudo-Lista para Nebulosa de Geórgia I” ou no próprio “Estudo-Lista Geologia do Arpoador”, a precisão dos dados, anotados quase displicen- temente, como o vestígio urgente de um pensamento que irá se esvair, se confunde com a dimensão estética da colagem. Tal confusão talvez apareça mais explícita e frequentemente na contemporaneidade, porém, o flerte de artistas com a ciência e de cientistas com o universo da arte já têm uma longa história que atravessa tanto a técnica como os modos de organização e apresentação do material.

De todo modo, a fotografia possibilita que fragmentos diversos sejam colocados em uma mesma superfície e passem a ter uma relação entre si. As imagens se igualam nesse espaço comum onde suas semelhanças e dife- renças passam a ser evidenciadas. É preciso que se examine essas imagens, escolhendo aquelas que serão postas em relação. Da mesa de montagem elas passam para o quadro, posição necessária para que entrem em tensão e haja uma visibilidade. A estabilidade do quadro ocorre a partir do em- bate com o prego que o sustenta, tentando vencer a vontade da gravidade de jogá-lo novamente para o chão. Impulso para voltar a integrar o uno da natureza. Cair no chão, se dissolver. Ao mostrar os seus estudos, Bonisson subverte a sua atenção ao acabamento e coloca a sua própria mesa de mon- tagem exposta. O seu arquivo, lugar a ser preservado e espaço de preserva- ção, passa a ser apresentado ao público. Mostra-se a sua vulnerabilidade. Para salvar as coisas da indiferenciação, não basta arquivá-las, é preciso usá-las. É esse movimento que faz de Bonisson mais do que um coletor de imagens. Ele produz o seu arquivo sobre o qual interage a fim de produzir seus projetos e os objetos que irá expor.

O arquivo é o lugar de guarda que torna possível conduzir a imagem para um uso. Porém, para salvar as coisas da indiferenciação, não basta preservá-las. É preciso promover relações, expô-las, compartilhá-las. Afi- nal, aquilo que fará as imagens serem realmente salvas não é a sua preser- vação no arquivo, mas a sua circulação. A imagem se manifesta ao encontrar obstáculos nos quais ela ganha um corpo. Cada novo obstáculo é a possi- bilidade de sua redenção. Sem os obstáculos que lhe deem visibilidade, ela vai se deteriorando ou sendo preservada em um estado fantasmático. É pre- ciso que se faça uma nova leitura, sempre. Inventariar o arquivo. Ver o que a imagem tem para apresentar a cada vez que se manifesta. Perceber na imagem e no arquivo outras aberturas e o que se mostra a partir delas. Re- tomá-las. Tarefa que confunde o papel do artista, do cientista pesquisador e do colecionador.