Rosangela Rennó

Experiência de cinema na arte contemporânea:

o trabalho de Rosângela Rennó

o interesse por imagens de naturezas distintas, como as desprezadas por arquivos, encontradas em feiras, ou de legibilidade difícil, além de tecnicamente adulteradas e de valor estético incomum é o traço reve- lador da obra da artista mineira Rosângela Rennó. Neste nicho, a fotografia tem primazia em sua obra, mas ela trabalha também com imagens em movimento, com vídeo e instalações de objetos, e expressa, como uma de suas marcas, a pesquisa de linguagens artísticas distintas: as artes plásticas, o cinema, o vídeo, a fotografia e a literatura.

O trabalho de Rennó é instigante para se refletir sobre a heterogeneidade de processos de criação, apontando para uma questão cara às artes contemporâneas ligadas ao hibridismo do campo estendido, em que imagens produzidas em uma arte sobrevivem e se atualizam em outras, com uma potência e uma vitalidade inigualáveis (Rancière, 2012).

Durante muito tempo, Rennó foi conhecida como a “fotógrafa que não fotografa”. Importante trazer à tona esta questão, pois ela permite que se lance um olhar plural para o trabalho da artista visual que, em vez de registrar o que vê através da câmera fotográfica, encontra, em seu gesto diante da imagem, aquele do colecionador e do arqueólogo. Apropria-se de imagens e textos, de fotos de família, fotos 3×4, retratos policiais e aposta na ressig- nificação simbólica não só das imagens existentes, mas dessa condição que lhe permite investigar a memória, a identidade, seus rastros e apagamentos.

Nos anos 80, quando ainda vivia em Belo Horizonte, começou a trabalhar com fotos encontradas em álbuns de retratos, o que resultou na série “Pequena ecologia da imagem” (1988), onde coloca em evidência figuras obscurecidas, veladas, fora de foco. O ato de colecionar esta gama de ‘imagens marginalizadas” se tornou mais que uma obra em si, mas foi decisivo para a formação de suas estratégias de pesquisa.

O trabalho de Rosângela Rennó tem sido exposto largamente não só no Brasil, mas no mundo. Detentora hoje de uma carreira internacional em ascensão, a artista visual registra mais de 60 exposições individuais desde 1989, participação em mais de 70 exposições coletivas desde 1985 e já foi premiada mais de 10 vezes em salões de arte.

Se, nas séries “Experiência de cinema” (2004) e “Frutos estranhos”(2006), a artista experimenta com dispositivos maquínicos que geram movimentos em imagens estáticas, remetendo às primeiras experiências de cinema; na série “Lanterna Mágica” (2012), fotografias são potencializadas visualmente por projetores antigos do século xix e do início do xx, do tipo lanterna mágica, permitindo que as imagens habitem o mundo do mistério, da fantasmagoria.

Já em “Yanğyin Bosphoros” (2012), integrante da série “Turista Trans- cendental”, iniciada em 2009 com Bouk [Ring/Loop], a artista utiliza-se do vídeo experimental para criar imagens a partir de suas experiências em lo- cais exóticos, utilizando-se da imagem e da música. Assim, em “Yanğyin Bos- phorus”, Rennó filmou as margens oriental e ocidental do estreito de Bósforo, na Turquia, sobrepondo-as, transformando uma viagem que dura três horas em um vídeo com metade desse tempo.

O trabalho de Rennó é também fértil para se pensar a ideia de “cena expandida” que vem perpassando as práticas artísticas atuais, teatrais e per- formáticas, bem como visuais, entre elas o cinema e a fotografia. A ideia de cena ampliada deriva de um desdobramento do conceito de arte no campo dilatado desenvolvido pela crítica de arte Rosalind Krauss ainda nos anos 70. Em seu artigo “A escultura no campo ampliado”, Krauss consegue nomear algo que estava acontecendo nas práticas artísticas de modo generalizado na época: o abandono do trabalho sobre meios e especialidades próprios a cada forma de expressão artística em prol da experimentação deliberada de toda e qualquer matéria do mundo, bem como da experiência de vivenciar este mundo.

A cena ampliada não representa, então, algo absolutamente novo, pois, durante todo o século xx, as artes cênicas – e, de modo geral, todas as artes – foram negando os seus princípios constitutivos. Essa negação en- volveu também uma contaminação e um esgarçamento das linguagens ar- tísticas entre si, gerando o hibridismo e uma coexistência de poéticas que vêm marcando a arte há algumas décadas.

Teresa Bastos